sábado, 7 de março de 2009

Aline França e a heroização da raça

Moema Parente Augel

Universidade de Bielefeld (Alemanha)

O final da década de setenta foi profundamente rico para a literatura afrobrasileira. Osvaldo de Camargo de São Paulo e Oliveira Silveira do Rio Grande do Sul reafirmaram seus talentos e, sobretudo na poesia, destacaram-se também nomes como Cuti (pseudônimo de Luiz Silva) e Paulo Colina em São Paulo, Éle Semog no Rio de Janeiro, autores que desde então vêm marcando com suas publicações o panorama literário brasileiro. Na mesma época em que Geni Guimarães em São Paulo publicava seus livros de poemas, uma outra mulher, na Bahia Aline França escreveu dois romances, um lançado em 1978, com o título Negão Dony, tratando da vida de um modesto funcionário do manicônio judiciário do Estado, profundo conhecedor dos segredos do candomblé. O segundo romance, A mulher de Aleduma, foi publicado em 1981, tendo tido mais tarde uma segunda edição conforme o jornal A Tarde,de 17.7. 1981, "depois que os movimentos negros na Bahia conseguiram desligar-se das tranças de Gilberto Gil", a militante Aline França, renunciou à postura de "jamaicana", deixou de sonhar com o retorno às raízes e voltou-se mais para o seu espaço de negra de sua terra, vestindo as roupas que sempre vestira, procurando conhecer melhor a realidade baiana, a realidade do espaço onde vivia, passando a ter uma outra visão a propósito dos compromissos sociais de seu povo". Considerando que a denuúncia pura não ajuda a solucionar as discriminações raciais e que as lamentações não logram resolver os problemas básicos que martirizam sobretudo a população negra brasileira, tais como como a falta de moradia, o não acesso aos sistemas de educação ou de saúde, entre outros. Aline França, funcionária de uma unidade da Universidade Federal da Bahia, partiu para outra atitude. E essa foi a de começar a escrever. Escrever sobre temas ligados ao mundo negro, mas produtos da sua incrível fantasia.
A Mulher de Aleduma é um canto de confiança e de orgulho, uma exaltação à raça negra. Aline reinventou as origens da sua raça, simbolizando uma luta em que a figura central - Aleduma - negro quase divino, faz gestar no país imaginário de Ignum, uma população negra e bela, mas com um pormenor, as pessoas ali nascidas tinham os pés para trás. Só com o passar dos tempos, é que seus pés se voltam para a frente, numa alegoria sobre as dificuldades e impecilhos ultrapassados. Foi preciso uma penosa mutação, uma lenta metamorfose, para aquele povo atingir o seu objetivo, que era poder seguir em frente, o seu próprio caminho, com os seus próprios pés. Entre as muitas dificuldades que passaram o povo de Aleduma, estava a escravidão ("A tempestade caiu sobre os negros da Terra, aquele sofrimento previsto pelo Velho Aleduma estava presente, a escravidão tomou conta daquela gente, o canto alegre do ibedejum emudeceu, e toda a a história do continente estremeceu"). A "ilha maravilhosa", de Coinjá, a ilha de Aleduma, foi o refúgio dos negros que conseguiram escapar do cativeiro. O "lugar apropriado para um recomeço de povoação".( p. 9/10). A " ilha maravilhosa", de Coinjá, a ilha de Aleduma, Ilha utópica, onde tudo era harmonia e beleza, onde as mulheres andam nuas com toda singeleza, e cujos os habitantes têm uma missão a cumprir. Um filho de Coinjá "irá distribuir uma energia que abrangerá todos os povos do universo, sem distinção de raça ou de religião". A paz daquele povo foi pertubarda pela chegada de brancos ambiciosos, que vieram explorar as riquezas da ilha e tentaram em vão descobrir o segredo daquela harmonia. As mulheres descendentes de Aleduma ocupam um lugar central no romance. A bela Maria Vitória é a figura mais ativa do livro, dotada de qualidades sobrenaturais e incarnando o elemento continuador e o sustentáculo da raça. A velha Catilê, portadora de dons de cura, tinha as orelhas em forma de estrela (p.57), reveladoras do seu papel especial. As Graúnas, seres fantásticos e perigosos, mulheres que têm uma fileira de mamas, que vão das orelhas até o umbigo, representam forças ameaçadoras que precisavam ser vencidas e ultrapassadas. São figuras femininas que simbolizam os diversos aspectos da Mãe Ancestral, misto de bondade, sabedoria mas também detentora do poder sobre a vida e a morte.

Os heróis de Aline França são possuidores de uma força incomum, um poder sobrenatural. E ela no romance procura mostrar como podendo ser transmitido a todos os negros que aceitarem a mensagem do planeta Ignum, o planeta de origem do velho Aleduma. Os exemplos de um poder multiplicam-se no livro e não deixam dúvidas sobre a sua eficácia.

O livro teve duas edições consecutivas, foi adaptado para o teatro, conhecendo um impressionante sucesso no seio do povo negro da Bahia, não só entre os intelectuais do Movimento Negro e demais grupos envolvidos com a cultura afrobrasileira, mas inclusive entre iletrados,o povo simples da rua, pessoas não acostumadas a leitura de romances. Pode-se perguntar como uma autora tenha alcançado tanta repercursão e como foi possível atingir esse público em princípio avesso a leituras.

Um mérito do livro está na perspectiva, no enfoque completamente diverso do que se encontra em geral dentro do vasto e variado espectro da literatura afrobrasileira. Um livro cheio de otimismo e confiança com uma estória onde os negros são heróis, belos, corajosos e dignos, seres extraordinários, dotados de qualidades e poderes fora do comum. Completamente alheio a qualquer tipo de vitimização, o livro de Aline França não tematiza os horrores da escravidão, nem as misérias ou humilhações por que passam atualmente os afrobrasileiros. Afirma com convicção que a sua raça, a raça negra, está destinada a feitos gloriosos, dos quais todos hão de orgulhar-se. A linguagem é simples e despretenciosa, o romance é singelo, mas ao mesmo tempo de extrema ousadia, recheado de episódios estranhos, onde o fantástico maravilhoso e o realismo mágico caminham lado a lado com narrações prosaicas e ingênuas. Aline França consegue criar um universo fantástico, onde a dimensão da magia ocupa um lugar proeminente, misturada à vida quotidiana e a estórias de amor, ciúme e vingança.