sábado, 7 de março de 2009

Aline França, uma escritora/pintora


Certa vez fui cobrar de Aline França a continuação de "A Mulher de Aleduma" - que ela nos havia prometido com o título de "Vencedores de Kija" - e a resposta,foi dada com a maior tranqüilidade do mundo - "Eu agora estou pintando", não me surpreendeu nem um pouco.
Na verdade, foi como se ouvisse algo que, inconscientemente, há muito esperava ouvir. Aline, descobriu também o segredo das tintas e dos pincéis e foi pintando com as palavras. Ás vezes quadros bucólicos de uma ilha imaginária - que sabe de uma África pôr todos nós sonhada, mística e mítica, ideal e idealizada, não profanada pelos colonizadores nem pelos traficantes de escravos.
"Coinjá, ilha maravilhosa, com sua paisagem repousante, praias de alvas areias e lua de beleza pálida..."
Ás vezes carregando nas tintas para produzir retratos de mulheres com vários pares de seios, virgens que se comunicam telepaticamente com o planeta Ignum, da deusa Salópia e do Velho Aleduma.
É um dos traços marcantes da obra de Aline, esta capacidade de inventar, de usar das palavras com golpes de um pincel, palavras, por ela criadas, que o seu universo, tão rico e tão fértil, não cabe no vocabulário disponível em grámaticas ou dicionários; Aleduma, Irisan, Macujaí, Catilê, Coinjá...Palavras ritmadas com a musicalidade das línguas africanas que Aline não conhece mas intúi: Datigum, Mamba, AjudamTamdê, Agamiam Jumi, Kaitamba...
Mesmo porque, a outra marca onipresente no seu trabalho é mais que a negritude, a africanidade.
Uma africanidade que - é importante que se diga - não a enquadra em nenhuma das tendências mais conhecidas da literatura negra contemporânea, desde o movimento da negritude, lançado nos anos 30 por Senghor, Césaire e Damas, até as correntes mais recentes, como a negritude marxista de Jacques Roumain, (Haiti) ou feminista de Buchi Emecheta (Nigéria). Muito menos a anti-negritude dos dos nigerianos como Soyinka (o tigre não precisa proclamar a sua tigretude) ou Femi Ojo-Ade.
Ela é, antes, o lirismo primevo dos gritos, dos cantadores de oriki, ou de ijala. A sua obra, que já foi comparada por Gasana Ndoba á do guineano Câmara Laye. É africano quando, ao invés de chorar o negro escravizado, discriminado, explorado, o apresenta sobretudo, como um vencedor, "uma raça que, futuramente, viria a se tornar, na história desse continente, um componente de relevante importância.
Não que desconheça os tormentos pêlos quais o nosso povo passou.
Com seriedade, ela narra a invasão dos brancos, a brutalidade e a violência do desrespeito às coisas sagradas - como no estupro de Maria Vitória - a aculturação, simbolizada em Tadeu, o jovem empresário.
Na destruição da Ilha de Aleduma sintetiza a destruição da África dos nossos sonhos. Mas a sua mensagem é de forma e coragem. Ela visita cada situação - até Santo Antônio de Catejeró está presente no livro - vi - vida pêlos filhos de África na diáspora.
Os jovens do MNU que discutem o papel do negro na sociedade; o afoxé que canta as músicas vencedoras no último festival; mestre Calá, de todos nós, lider e amigo; o operário em cima do andaime.
E todos recebem o convite para participar do cogresso em Ignum, o mágico planeta donde os negros vieram, enviados pêlos deuses.
Convite que é, na verdade, o chamado de Aline para a luta e para a resistência.
Uma luta que ela conhece tão bem, desde que chegou em Salvador, menina do interior, - nascida em Teodoro Sampaio - Bahia - carregando seus sonhos e sua imensa determinação.
Aline já nasceu escritora. E não houve porta que conseguisse permanecer fechada para ela.
"Negão Dony", seu primeiro livro, com capa de Carybé, é hoje uma raridade bibliográfica. " A Mulher de Aleduma", já na 3ª edição, foi alvo de tantos artigos, em tantos idiomas. "Os Estandartes", conto/poemeto, no dizer de Capinam, já é peça de teatro.

E Aline, que participou de congressos na Bélgica, já foi entrevistada por jornalistas do Brasil, Nigéria, Bélgica, Alemanha, Estados Unidos, Itália, Holanda e, naturalmente, de vários estados do Brasil, consegue um sucesso que poucos escritores conseguem uma popularidade junto a um público de faixa etária e extrato social, conduz muito mais para os meios audio- visuais de comunicação. "A Mulher de Aleduma", cuja primeira edição foi financiada pelo Projeto Cultural Cantina da Lua e teve lançamento no Encontro de Entidades Negras , que integrou a programação da SBPC - Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 1981. Teve relançamento festivo na sede do Ilê Aiye, um dos mais importantes redutos da cultura negra em Salvador, e no Teatro Castro Alves.
Foi, também tema do afoxé Zambiapomba, no carnaval de 1986, quando sua escritora mereceu uma grande homenagem.
Que ninguém pense que ele conseguiu nada disso com facilidade, Aline encontrou dificuldade. Somente uma fortiafri como ela conseguiria vencer, com sua tranquila determinação, todos os obstáculos que se apresentaram e chegar onde chegou.


Ieda Machado Ribeiro dos Santos(in memoriam)
fevereiro de 1986